“Um horizonte limpo, nada com o que se preocupar...”
Foi o
que Alfred Hitchcock começou dizendo quando questionado sobre qual era sua
definição de felicidade. Ele falava sobre criatividade, sobre relações humanas,
emoções e sensibilidade. Faz todo sentido que em uma cena de Soundtrack apareça
essa citação, diga-se de passagem, maravilhosa, pois o filme todo e a
trajetória do personagem em si tem muito a ver com todos esses elementos
.
Soundtrack nos apresenta Cris (Selton Mello), um rapaz
fotógrafo que viaja até o sul do mundo numa base de operações científicas em
prol de realizar o ápice de seus trabalhos artísticos; tirar auto-retratos
ouvindo músicas no meio daquele cenário gigantesco de gelo, para quando houver a
exposição de seu trabalho, as pessoas ouvirem as músicas que ele estava
escutando e entender o significado de sua viagem. Porém, logo na sua chegada,
Cris enfrenta problemas de relações com a equipe de pesquisa. Huang (Thomas
Chaaning), Rafnar (Lukas Loughran), Mark (Ralph Ineson) e até mesmo Cao (Seu
Jorge), o único brasileiro na base além de Cris, não se sentem muito
confortáveis com a presença do fotógrafo.
Duas funções extremamente distintas. De um lado, um rapaz
que quer tirar fotos de si mesmo para uma exposição, e do outro, cientistas que
estão há muito tempo trabalhando, e que só terão o resultado de seus trabalhos e
pesquisas dentro de um século. Imediatismo e processo. Sentimentos e
resultados. Arte e ciência. Contradições extremamente presentes nos
relacionamentos dos personagens, e que se refletem principalmente entre Cris e
Mark. Ralph Ineson faz um excelente papel de um homem cansado, que está longe
de sua família, que deixou sua esposa grávida de 6 meses em prol de seu
trabalho, mas que apesar de tudo, possui sentimentos pelo que faz, pela
ciência.
Todo esse conflito dos personagens é muito presente no
início do filme, até nós, espectadores, nos permitimos sentir um pouco de
desconforto, mesmo porque não sabemos de inicio quais são os objetivos de Cris,
não sabemos nada além daquilo que ele nos falou. E isso é um ponto a elogiar
nos roteiros e na direção; o fato do filme não apresentar flashbacks (existem
um ou dois), e optar por nos mostrar a história fechada somente naquele lugar e
naquela situação específica, possibilita o entendimento de tudo através de
diálogos e elementos de roteiro, o que é fantástico. Pelo mesmo motivo, a
situação das relações entre Cris, Mark, Cao, Rafnar e Huang vá mudando
gradativamente. Até mesmo as ideias de quem assiste podem ser diferentes, e
mudarem ao longo do filme. Mas falando nos personagens; todo o elenco foi
extremamente eficaz. Talvez isso aconteceu por só existirem eles ali o filme
inteiro e isso pode ter sido uma vantagem de cada um conhecer seu personagem
melhor, mas ainda assim, em nenhum momento percebe-se uma drástica falha de
atuação, estão todos na linha que o filme oferece. Em um momento ou outro não
fica muito clara a motivação dos personagens, como por exemplo a do próprio
Cris, mas surpresa; não é mérito e nem demérito dos criadores, tudo é tão
sensível e melancólico que é possível entender, mesmo que seja na sua própria
visão. Sobre a produção; mais um ponto para o filme. O cuidado foi tanto que quase
não se percebe que o filme foi rodado na verdade num estúdio, com poucas cenas
gravadas em ambientes externos. Algumas cenas foram feitas completamente em
computação gráfica (algo que me surpreendeu quando Júlio, um dos produtores
revelou na coletiva de imprensa). Pra deixar claro o que eu to falando, preste
atenção na cena do triturador de gelo, aquele enorme veículo que é muito real e
palpável – não parece CG.
Em alguns momentos (poucos, mas pontuais) de Soundtrack é
possível sentir uma leve aflição, e isso é mais um mérito dos diretores por
pontuarem muito bem a sensibilidade dos personagens e do cenário extremamente
ameaçador. A opção por um lugar isolado do mundo reflete justamente o que o
filme em si quer dizer; o isolamento e as relações entre áreas diferentes,
objetivos diferentes, e pessoas diferentes.
E sobre a “trilha sonora”? Afinal, é o título do filme. A
resposta é; tudo isso não se limita apenas na arte da música. Ela é uma parte
de um inteiro que permite muitas sensações diferentes. Um tremendo auxiliar na
trilha das nossas jornadas. A música, que é de fato presente no filme no
formato de trilha, não é na verdade o foco, até porque, repito, a trilha pode
ser a não trilha sonora, a não presença da música, e sim a jornada do
personagem, uma parte e o desfecho de uma história.
Soundtrack é um filme sensível, sobre pessoas e suas
relações, “um filme tão humano numa época desumana”, nas palavras de Selton. É
uma histórica fechada, uma parcela da visão que podemos ter de mundo, num
ambiente fechado e isolado do resto de tudo. Mas ainda assim é uma história universal,
com tipos de relações que acontecem no dia-a-dia. Quebra de preconceitos,
amizades, sensiblidade, ciência, arte... um misto de elementos que formam uma
boa história e uma boa experiência num filme.
Título: Soundtrack
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